Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de 2010
Super trunfo Até hoje tive três carros. Três carros que chamei de meus. Na verdade, eu os ganhei. Nenhum deles foi um sonho novo, e sim, realidades semi-novas. Bem, cavalo dado não se olha os dentes, certo? Mesmo quando falamos de sessenta cavalos, cento e vinte cavalos? Para ser exato, não sei quantos cavalos cada carro tinha (ou tem, vai saber), mas não olhei os dentes. No máximo, mostraram-me a correia dentada; de relance. O primeiro era roxo. Era feio. Era um Ford Ka. Preciso falar mais? Não, mas eu quero. Um Ford Ka 97 roxo. Uma azeitona sem ar ou direção que me levava pra cima e pra baixo. Seu apelido: shake-móvel. Eu adorava. E adorava cada defeito nele. O fato de não caber ninguém (e mesmo assim eu colocar todo mundo dentro), a cor horrorosa, e, principalmente, o shake de pelúcia – brinde do mclanche feliz – que eu deixava em cima do painel. Um dia, uma garotinha no semáforo pediu o bichinho de presente. “Você vai cuidar bem dele?”, perguntei. Meses depois, ele (o carro) foi
O.P.S. Fio dental, sorriso, fio dental na frente, atrás, sorriso. Gengiva, sorriso. Certo. Língua, mostra a língua, mostra mais. Ok. Vira o rosto, quarenta e cinco graus pra esquerda, quarenta e cinco pra direita. Pinça. Ergue o queixo. Ótimo. Torneira aberta, mãos também. Esfrega um lado do cabelo, agora o outro. De novo, boa. Pega o pente do bolso, deita os fios para trás. Uma, duas, três vezes. Sorriso. Vira pra lá, vira pra cá, sorriso. Gengiva, sorriso, fecha a boca. Camisa. Cuidado, calma. Botão, botão. Gola, ajeita, estica. Espana uns pontinhos brancos, puxa a camisa pra baixo. Não tanto. Arruma pelos ombros. Gola reta. Sorriso. Ok. Casaco. Mais cuidado. Gola da camisa de novo. Zíper. Até a metade. Lado esquerdo do cabelo. Fio atrás da orelha. Pronto. Carteira no bolso, chave na mão, relógio no pulso. Boa. Sorriso, vira para um lado, vira para o outro. Puxa o casaco para baixo. Perfeito. Abre a porta, despedida. Fecha. Ganha a rua. Ponto, aceno, catraca. Sem assento. Fazer o quê
Sempre Acordou sabendo que aquele seria o último dia. Acordou cedo. Mas não foi trabalhar. Tomou um banho gostoso, daqueles bem demorados. Lavou o cabelo umas três vezes. Ensaboou cada centímetro ao menos duas. Fez a barba, escovou os dentes e penteou-se de uma forma despenteada. Vestiu seu jeans preferido, uma camiseta branca e o all star. Saiu de casa sorrindo. Desceu as escadas correndo. Eram quase dez e havia muito a fazer. Parou na padaria e pediu pão na chapa com requeijão. Para beber, suco. De laranja. Deixou o carro na garagem. Escolheu o metrô. Conseguiu se sentar. Sorte. Notou uma senhora chorando no banco em frente. Seus olhares cruzaram-se, ele apenas sorriu. Por um segundo ela parou de chorar. Desceu na luz. Visitou a Pinacoteca pela primeira vez; justo no último dia. Apreciou o máximo que pode. Tanto quanto o churrasco grego que almoçou depois. Tinha medo. Hoje não faria mal. Fez a digestão caminhando no parque. Observou cada folha, cada pétala. Pegou o celular e lig
Às vezes Às vezes sinto vontade de escrever, falar, mas nem sei por onde começar. Não é por falta de idéia. Curiosamente, penso que acontece o contrário. São tantas que nenhuma fixa, nenhuma fica o suficiente para ganhar forma. Sinto-me perdido numa grande nuvem, bem alta. A sensação não é ruim. Estranhamente confortável, mas dói pensar que talvez não haja fim. Talvez. Não adianta gritar, ou caminhar, estou sozinho nesse acolchoado mar de nuvem. Às vezes olho para baixo e vejo tanta coisa boa. Muitas possibilidades. Pessoas, acontecimentos, vidas inteiras rolando e eu aqui, assistindo. Tem um cara parecido comigo ali embaixo, vivendo em meu lugar. Pensam que sou eu, digo, as pessoas que estão com ele pensam que sou eu. Falam com ele, riem com ele, dançam com ele. E ele lá, aproveitando (tomara) tudo isso em meu lugar. Às vezes acho que ele me escuta. E sendo verdade, seria o único. Quando grito ou falo certas coisas, ele olha para cá, como se escutasse e me procurasse, sem nunca me enc
Terminal Ponto de ônibus, dez da noite. Uma senhora de olhos baixos e óculos meia-lua olha para a rua. Parece até não perceber se sua condução já passou ou não. Olha para rua, pelo menos é nessa direção que seus olhos apontam. Mas não, ela não olha nada. Ou melhor, por dentro, vê seu marido esperando impaciente o jantar que ainda nem começou a ser feito. Ao mesmo tempo, enquanto formas de carro passam à sua frente, vê seus filhos brincando. O mais velho ainda não subiu. Está lá com os amigos, conferindo de tempos em tempos se sua mãe chegou. Em cima, a dois cômodos do pai, a menina caçula imagina seu futuro de princesa com uma boneca velha nas mãos. A senhora de olhos tristes não parece apressada. Ela simplesmente espera, sem esperar por nada. Tem também uma menina bonita. No vigor da juventude. A cada sinal de movimento, pensa em seu ônibus, e pensa em seu prédio, e pensa em seu quarto e pensa em estar deitada ouvindo coisas bonitas do namorado distante. De tempos em tempos, pensa no
Podia se chamar vida Tem dias em que tudo acontece junto. Tem dias em que nada acontece. Tem dias em que a gente se sente mal. Tem dias em que a gente se sente. Tem dias em que dá saudade. Tem dias em que dá vontade. Tem dias em que nada pode. Tem dias em que tudo dá. Tem dias em que o tempo voa. Tem dias em que o tempo fecha. Tem dias em que o sono leva. Tem dias em que o pique vem. Tem dias em que se come muito. Tem dias em que nada desce. Tem dias em que se conhece o novo. Tem dias em que se repete o velho. Tem dias em que é preciso dar um passo pra trás. Tem dias em que é lindo dar três pra frente.
Era uma vez o que é Era uma vez um menino desengonçado. Que por pouco não chega ao primeiro aniversário; sobreviveu. Por vontade ou destino. (Aliás, que diferença faz?) Cresceu, crescia. E com ele, seus sonhos. Acordava de madrugada e dizia aos seus pais: “meu joelho tá doendo”. Ouvia sempre a mesma resposta: “sinal de que você está crescendo”. Voltava a dormir feliz, com dor, mas feliz. Sonhava grande, enorme, ganhando o mundo com seu sorriso gigante e abraço de elefante. Era uma vez um menino engraçado. Um garoto que ria, pegava errado no lápis, mas quase sempre acertava na palavra. Era quietinho e muito observador. Até os quinze era platéia solo de si mesmo. Ela adorava e ele se sentia à vontade. Disse que acertava na palavra? Mas só para quem ouvia. E ria. Era uma vez um menino calado. Era, porque deixou de ser. Deixou para trás o silêncio e conheceu o amor. Ou melhor: reconheceu. O amor que não se explica, aquele que apenas sente. O amor em si. Mes
Dois mil e dez Começa com dois, e dois é bom. Acaba com dez, nota máxima. No meio, mil; preciso explicar? O ano novo já não é novidade, mas vem com tudo. Fora o óbvio (Copa, eleições e sonoridade), chegou chegando. Estamos no segundo mês e não houve um dia de Janeiro que não tenha visto a chuva. E nem a chuva viu Janeiro; eu, pelo menos, não vi. E o Carnaval vem aí... se continuar assim, você, que só agora parou aqui, já deve ter visto a mangueira na Sapucaí. Isquindô, isquindô. Rimando e rodando. 2010 promete. Mas promete tanto que é certeza que não vai cumprir tudo. Tudo bem. Fiz minhas resoluções no primeiro dia e vou acreditar nelas até o último. Para ser exato, nem lembro totalmente quais são (estão em boas mãos), mas sei do que se tratam. Sabe aquela vontade de abraçar o mundo? Para mim, esta vontade nunca foi tão literal. Quero abraçá-lo com carinho. Pedir desculpas pelos meus conterrâneos e fazer cafuné no pólo norte, enquanto cochicho no ouvido da Oceania que 31 de dezembro de
Olhos bem fechados… Conferiu no mostrador quanto tempo de ar ainda restava em sua máscara. Quarenta e cinco minutos seriam suficientes. Saiu apressado, ganhou a rua adjacente e logo entrava no velho parque vizinho. Incrível como as árvores pareciam reais – como nos filmes. Foi ao canto escondido de sempre e, em poucos minutos, ela chegava. No abraço apertado podiam sentir o coração um do outro. Tocavam-se e roçavam-se freneticamente. O desejo beirava o incontrolável. Quando ameaçou arrancar a máscara, ela o deteve. Pediu que se acalmasse, pediu desculpas e sumiu no meio da paisagem artificial (com vontade verdadeira de ficar). Ele saiu pouco depois. Enquanto caminhava, lembrou-se de um velho que engraxava sapatos a duas esquinas do parque. Restavam quase vinte minutos e somente uma pergunta para fazer àquele homem. Em cinco, o avistou. Dois minutos depois, puxava o assunto. Perguntou se, no passado, teria este senhor experimentado aquilo que ele tanto almejava. Queria s